Wednesday, September 20, 2006

mais 1 susto?

No cinema de Buñuel há sempre transcendência

Oliveira regressa a Veneza exactamente 50 anos após a sua primeira visita ao festival, em 1956, quando acompanhou a exibição de O Pintor e a Cidade, documentário sobre o Porto, em que experimentava, pela primeira vez, o trabalho da cor.

Lembra-se da viagem de há 50 anos?
Em 1956 estive em Veneza 15 dias e vi os filmes todos do festival - nessa altura tinha tempo, não me chateavam com entrevistas... O meu filme começou por ser pateado, mas, no final, foram surpreendidos de uma maneira inesperada, e os aplausos foram totais, e a crítica muito favorável.

Por que decidiu homenagear Luís Buñuel? O que lhe interessa mais no seu cinema?
Aquilo que me agrada mais é a sua ironia e, ao mesmo tempo, o seu desespero. Para mim, e ao contrário do que toda a gente pensa, ele é um homem profundamente crente. Mas é descrente na humanidade. Em Viridiana, por exemplo, faz a simulação da Última Ceia e põe um cego no lugar de Cristo. A ideia dele é que os cegos são maus e perversos - e justamente põe ao centro da mesa um cego! A certa altura, ele diz: "É melhor tirar uma fotografia." E há uma mulher que passa à frente da mesa e levanta a saia, de costas para a câmara. O que eu admiro nele é que ele distingue nitidamente o público do privado. Buñuel nunca mostrou uma relação sexual, embora a indicasse, às escondidas - o mais atrevido que ele faz é pôr a mão no rabo da senhora, e escondê-la logo a seguir. É um homem profundamente subtil. É este contraste que me faz considerá-lo. Além disso, é um excelente realizador - não faz circo, vai ao essencial. E no cinema dele há sempre uma transcendência. O surrealismo nele é uma fórmula, que lhe é muito favorável, para o seu lado irreverente - é a maneira de mostrar o outro lado da realidade. Não é tanto uma fórmula estética, mas uma maneira de expressar o íntimo do ser humano - na sua perversidade.

Quem viu Belle de Jour, esperaria ver no seu filme Catherine Deneuve ao lado de Michel Piccoli. Só lá está Piccoli. Porquê?
Naturalmente, não podia deixar de convidar a Catherine Deneuve. Mas ela não estava disponível... Mas isto não é importante. Eu filmo personagens, e os actores só contam na medida em que representam essas personagens. Pode ser com um ou com outro actor.
Sérgio C. Andrade (PÚBLICO)